A realidade por trás das escavações onde foram encontrados restos mortais
de escravos e objetos utilizados por eles
Luciana Andreatta
A
remodelação de bairros como a Saúde e da Gamboa nos trouxe à tona algo que
estava o tempo todo bem abaixo dos nossos olhos. Ou melhor, dos nossos pés. A
casa na Rua Pedro Ernesto, 36, na Gamboa, onde moram Mercedes e Petrúcio
Guimarães dos Anjos foi o berço das descobertas, em 1966, tão antagônico quanto
o que foi encontrado: uma necrópole de negros chamada Cemitério dos Pretos
Novos.
O
comércio de escravos, muitas vezes, acontecia nas próprias ruas. O mercado em
si era uma aglomeração de vendedores que
se encontravam entre o Outeiro da Saúde e o Morro do Livramento. Também se podia ter acesso através do caminho do
Valongo, saindo dos fundos da cidade em direção ao mar, como explica o
historiador Cláudio Honorato em seu livro O
Mercado do Valongo e o Comércio de Escravos Africanos, de 2011. Antes de
serem postos à venda, os escravos eram levados ao Lazareto, uma armazém na
Gamboa onde eram lavados, vestidos com trapos novos e de onde seguiam para os
pontos de venda.
Antes
de desembarcarem na região do Valongo, iam para a Ilha de Jesus, na Baía de
Guanabara, onde ficavam de quarentena. Em 14 de julho de 1810, no entanto, foi
solicitado ao Príncipe Regente, que se criasse mais uma parada de tratamento de
escravos, que viesse a facilitar o trabalho dos traficantes. Nessa época o
Lazareto se instalou. Curiosamente, o ponto de parada no meio do caminho entre
o armazém e os pontos de venda era, justamente, o cemitério dos pretos novos.
A quarentena não lembrava nada além
do próprio navio em que vieram, antes da mudança para perto do Valongo. Negros
contraminados acabavam por contaminar a tripulação. Era grande o medo do
prejuízo, mas ainda o medo de que o escorbuto, sarampos e bexigas d’água
poderiam causar.
Os mortos não tinham direito a
caixões. Geralmente nus, eram transportados por dois negros. Não tinham covas
também. O que os separava do mundo dos vivos era apenas um punhado de terra.
Tão pouca, que havia relatos de ossos que pulavam enquanto carroças passavam.
Além disso, os mortos exalavam um cheio
quase insuportável. Alguns registros de óbitos na Igreja de Santa Rita deram margem
de pesquisa aos arqueólogos de 4 mil escravos enterrados entre 1824 e 1830.
Nesses registros, raros para a época e para sua importância, vinham os nomes e
o tipo de navio em que vieram.
Junto com
os ossos, foram encontrados contas de vidro, adornos e a cultura material das
cidades dos séculos XVIII e XIX. Do Cemitério dos Pretos Novos, contudo, não se
podia pesquisar a vida dos escravizados, visto que lá estavam sepultados apenas
os que haviam acabado de chegar da África. Os rituais eram tristes. E muito
próximo do Lazareto: os amigos dos mortos podiam ver os sepultamentos.
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