segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pretos novos de um velho passado


A realidade por trás das escavações onde foram encontrados restos mortais de escravos e objetos utilizados por eles

Luciana Andreatta



                  A remodelação de bairros como a Saúde e da Gamboa nos trouxe à tona algo que estava o tempo todo bem abaixo dos nossos olhos. Ou melhor, dos nossos pés. A casa na Rua Pedro Ernesto, 36, na Gamboa, onde moram Mercedes e Petrúcio Guimarães dos Anjos foi o berço das descobertas, em 1966, tão antagônico quanto o que foi encontrado: uma necrópole de negros chamada Cemitério dos Pretos Novos.
                  O comércio de escravos, muitas vezes, acontecia nas próprias ruas. O mercado em si  era uma aglomeração de vendedores que se encontravam entre o Outeiro da Saúde e o Morro do Livramento. Também se  podia ter acesso através do caminho do Valongo, saindo dos fundos da cidade em direção ao mar, como explica o historiador Cláudio Honorato em seu livro O Mercado do Valongo e o Comércio de Escravos Africanos, de 2011. Antes de serem postos à venda, os escravos eram levados ao Lazareto, uma armazém na Gamboa onde eram lavados, vestidos com trapos novos e de onde seguiam para os pontos de venda.
                  Antes de desembarcarem na região do Valongo, iam para a Ilha de Jesus, na Baía de Guanabara, onde ficavam de quarentena. Em 14 de julho de 1810, no entanto, foi solicitado ao Príncipe Regente, que se criasse mais uma parada de tratamento de escravos, que viesse a facilitar o trabalho dos traficantes. Nessa época o Lazareto se instalou. Curiosamente, o ponto de parada no meio do caminho entre o armazém e os pontos de venda era, justamente, o cemitério dos pretos novos.
                  A quarentena não lembrava nada além do próprio navio em que vieram, antes da mudança para perto do Valongo. Negros contraminados acabavam por contaminar a tripulação. Era grande o medo do prejuízo, mas ainda o medo de que o escorbuto, sarampos e bexigas d’água poderiam causar.
                  Os mortos não tinham direito a caixões. Geralmente nus, eram transportados por dois negros. Não tinham covas também. O que os separava do mundo dos vivos era apenas um punhado de terra. Tão pouca, que havia relatos de ossos que pulavam enquanto carroças passavam. Além disso,  os mortos exalavam um cheio quase insuportável. Alguns registros de óbitos na Igreja de Santa Rita deram margem de pesquisa aos arqueólogos de 4 mil escravos enterrados entre 1824 e 1830. Nesses registros, raros para a época e para sua importância, vinham os nomes e o tipo de navio em que vieram.

      Junto com os ossos, foram encontrados contas de vidro, adornos e a cultura material das cidades dos séculos XVIII e XIX. Do Cemitério dos Pretos Novos, contudo, não se podia pesquisar a vida dos escravizados, visto que lá estavam sepultados apenas os que haviam acabado de chegar da África. Os rituais eram tristes. E muito próximo do Lazareto: os amigos dos mortos podiam ver os sepultamentos.
Sapato encontrado durante as escavações na Gamboa, no Cemitério dos Pretos Novos. Foto: Renzo Gostoli
 

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