segunda-feira, 1 de julho de 2013

A moda em dois tempos


Conheça os trajes dos cariocas no Centro do Rio, hoje e na época em que as escravas eram majoritárias na região


Fabrizzia Milione

 

A expressão “escravos da moda” é bastante popular, mas, se fizermos um jogo de palavras e invertermos o sentido, brincando  com a língua portuguesa chegaremos a uma “moda escrava”. Em hipótese alguma a tendência do ano aponta para o trabalho explorado, mas ao produto da roupagem real e negra que desfilou a cara de uma época.
Desde o século XVI, Gamboa e Saúde constituem algumas das “passarelas” históricas do cenário nacional. Se dermos uma conferida no Centro e adjacências do Rio de Janeiro atual, testemunharemos a transformação no vestuário dessa gente que reescreve o comportamento e o visual do Morro da Conceição, antigo Valongo, e da Rua Pedro Ernesto, conhecida anteriormente como Rua da Harmonia.
Atualmente, o que dita à moda nos recantos dessa região da cidade são, majoritariamente, tecidos leves e roupas por vezes curtas, alongadas e esvoaçantes, que não economizam no colorido ou estacionam no neutro, conhecido como “basiquinho”. Por um lado, registramos braceletes de fivela larga, laços, babados, rendas, bordados, vidrilhos, franzidos e adereços que abusam da madeira e do coco, marcando alguns dos itens que nos fazem ter a sensação de déjà vu com as gravuras dos livros de história. Por outro, damos de cara com as lycras e estampas modernas que colidem com a moda que imperava nas tradicionais ruas da cidade.
Pintura atual encontrada no Morro da Conceição

‘O que veste o Centro’

Após subir a ensolarada Pedra do Sal numa manhã de sábado, a diarista e moradora da Conceição há cinco anos, Sandra Oliveira, voltava das compras com o típico shortinho verde fluorescente das comunidades, quando confirmou a salada de estilos que circula diariamente pelas entradas e saídas do morro.
 – Aqui você encontra de tudo. Das bijuteriazinhas aos panos brancos e até esses turbantes de religião que estão pintados na subida da Pedra. É tudo muito simples. No dia do samba, tem tanto o rapaz com o short de tactel, quanto àqueles parecidos com os antigos malandros e as velhas guardas das escolas — disse ela, aos 63 anos.  – O importante é que depois de tanto tempo o morro ainda tem o estilo, – completou com um largo sorriso. 
Uma moradora de Copacabana, que caminhava pela Pedro Ernesto e preferiu manter o nome em sigilo, contou que costuma visitar com frequência o local e que procura trajar aquilo que considera “a cara” da região. De chapelão e combinações claras e nude, mais aproximadas à cor da pele, a visitante da Zona Sul resgatou tons de panos semelhantes aos amarrados ou costurados no corpo das escravas antes da vinda da realeza portuguesa para o país, que eram modificados em razão do trabalho.
 Uma boa dica para ficar por dentro do assunto é garimpar os registros da exposição “Mulheres reais – modas e modos no Rio de D. João VI”, realizada na Casa França-Brasil, Centro do Rio, em 2008. Nela, descobrimos um pouco de como o país aprendeu que se vestir e como representa um exercício de criatividade. Moderna, cafona, “in”, “out” ou “démodée”, a cronologia do estilo na estampa feminina reflete as transformações sociais ainda vivas na sociedade brasileira.


O guarda-roupa do país há mais de 200 anos
As roupas das escravas eram basicamente feitas de farrapos, panos e remendos que costumavam sofrer modificações devido ao trabalho duro das negras. Modelos diferentes surgiam em razão da necessidade, como na hora da lavagem de roupas em que peças mais curtas de saia começaram a ser trabalhadas para fugir do banho de água nos trajes. O curto não conferia tom de vulgaridade, já que no costume africano as peças servem para adornar, não para esconder o corpo.

Trajes das escravas no trabalho. Ilustração de Rugendas

Apenas com a chegada da realeza portuguesa e a Abertura dos Portos, em 1808, que os produtos europeus como joias, chapéus, bolsas e broches passaram a fazer a cabeça dos que aqui viviam. Celebrações da corte funcionavam como as atuais vitrines de lojas renomadas diante dos olhos das escravas que já começavam a absorver um tino comercial na venda de objetos ligados ao novo visual.
No contexto, surgiu a superstição no uso de amuletos e adereços mágicos para atrair dinheiro e proteção. Eram comuns as fusões do estilo africano ou então as vestes dadas pela patroa, ainda que inferiores. As negras que assumiam papel de domésticas serviam de reflexo do poderio social de seus donos. Nas ruas, o estilo se assemelhava ao das brancas, quando, muitas vezes chegavam até a herdar jóias de suas patroas.

A distância do jeito colônia de ilustrar o país estava anunciada no hibridismo, muitas vezes exagerado, entre as raízes africanas e as heranças europeias. A moda agora estava nas mãos, tesouras e ateliês do futuro.

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