segunda-feira, 1 de julho de 2013

O portal do Morro


Morro da Conceição é palco de incentivo e experimentação da arte


Por Thaís Mandarino


O espetáculo teatral Vermelho, escrito por John Logan, com direção de Jorge Takla, e interpretado por Antônio Fagundes e seu filho Bruno Fagundes, retrata momentos da vida do pintor russo-americano Mark Rothko. Ao final da peça, o pintor relembra como era bom quando os artistas só pintavam por pintar, por sentir necessidade; não existia galeria de arte ou marchand. Vermelho revela o fim que levou Mark Rothko: acabou ficando rico, mas se afundou na bebida e no cigarro e acabou morrendo por conta disso. Morreu rico e insatisfeito, pois sua arte já não era apreciada do jeito que ele julgava merecer. O fantasma que transformara sua arte em negócio comercial o acompanhou até seu último dia.
A peça, cuja temporada já se encerrou no teatro SESC Ginástico, emocionou especialmente um de seus espectadores. Quando a peça terminou, ele, também pintor, aplaudia e chorava ao mesmo tempo. Confessou depois que o choro veio em razão da emoção de saber que seus pensamentos e emoções já foram sentidos e pensados por outro pintor tempos atrás. Paulo Dallier nunca estudou pintura, e só começou a pintar aos 39 anos, após uma fatalidade na família. O sobrinho faleceu e a pintura tornou-se seu modo de sobreviver em meio à dor. Sua arte impactante é reconhecida tanto por quem entende do assunto quanto por crianças e leigos.
Dallier se autodenomina o “portal do Morro da Conceição”. Seu atelier, o número 15, na Ladeira João Homem, é também onde mora. São, ao todo, 16 ateliers. Seu avô comprou a casa em 1904, e Dallier foi para lá em 1932, aos três meses de idade. Na época em que era criança e já morava lá, a Presidente Vargas ainda não existia, e a Galeria Cruzeiro – onde hoje é o Edifício Avenida Central – ainda estava lá. Ele diz que a primeira lembrança que tem de sua vida é acordando numa manhã de Natal no Morro da Conceição. 

Dallier em seu atelier no Morro da Conceição. Foto Thaís Mandarino

De acordo com Dallier, o Morro da Conceição é o que resta do início do Rio de Janeiro, e na opinião dele, se não fosse construído em cima de pedras, o Morro já teria ido abaixo. A respeito da questão da revitalização do Morro com o Porto Maravilha e o Projeto Mauá – que ele criou com os pintores Marcelo Frazão, Claudio Aun e Renato Sant’ana – Dallier pensa que ninguém pode evitar o progresso. E se for preciso, ele roda a baiana com aqueles que têm medo do Morro ser invadido, das crianças não poderem mais brincar e correr pelas ruas e as mulheres não mais poderem conversar por cima dos portões. O pintor vibra com a projeção que o lugar vem ganhando. “Agora as pessoas vão ao museu MAR, e depois vêm aqui. O prefeito se tornou o curador do Morro da Conceição, e o Morro passou a ser a princesinha do Porto Maravilha.”
Dallier vê o Morro da Conceição como sua segunda pátria. Sua ligação com o lugar é tão grande que ele já compôs até um hino para o Morro. “Quando eu morrer, quero que os outros artistas carreguem meu caixão cantando o hino que eu fiz”. Dallier tem também blogs e crônicas sobre o Morro e está montando um livro com fotos, textos e letras de músicas sobre o Morro e também sobre ele. “Meu sonho era transformar esta casa no Centro de Cultura Paulo Dallier, mas como a casa não é minha não sei se será possível.”
A casa onde mora e tem seu atelier montado não é dele, mas da família. Dallier explicou que entregaram a ele um comodato que talvez force-o a deixar o local em março do ano que vem. A casa já serviu de moradia a muitos familiares, e a última moradora antes de Dallier foi uma prima – que ainda morava na casa quando ele chegou. Ela passava por um momento de depressão e isso se refletia no estado da casa, triste e abandonada. Após a morte da prima, o pintor vendeu alguns quadros e conseguiu dinheiro para a reforma.




Naquela manhã de chuva, Dallier estava chateado consigo mesmo e havia saído do atelier para ver a exposição que reúne o acervo de obras de arte brasileira de Roberto Marinho, no Paço Imperial. Segundo o artista, a visita à exposição deu a ele um jato de esperança, pois percebeu que sua obra não deixava nada a dever em relação ao que viu. Dallier, prestes a completar 81 anos, relembrou seu sonho de menino: morar no local onde agora está o Parque Lage e montar ali seu estúdio cinematográfico. Ele seria um produtor e diretor como Orson Welles. “É interessante como o cinema – sonho antigo – entrou agora no final de minha vida para marcá-la. Devo ter participado de oito documentários sobre o Morro e a minha arte”.



Obra de arte a céu aberto

O artista plástico Hélio Oiticica dizia que a obra de arte e a vida não se dissociam. Quem for ao Morro da Conceição saberá que Hélio esteve sempre certo. O Morro é como uma obra de arte em carne viva. Um Rio de Janeiro que preserva a arquitetura antiga e o ritmo de uma vida que não se leva mais em grandes capitais. E este lugar corta a cidade ao meio, fica no Centro. Uma dose de País das Maravilhas da Alice e Terra do Nunca de Peter Pan. No Morro da Conceição, existe sacolé de abacate, goiaba e manga por um real. Tem micos passeando pelos fios, meninos andando em suas motocicletas e jogando bola nas ruas. Tem mulheres conversando por cima do portão. Uma janela revela o ritmo do relógio da casa: a arvorezinha de Natal ainda não havia sido desmontada. É bem provável que fique até o Natal deste ano. Por que a pressa?



Um guia fala a seus ouvintes sobre o lugar inundado de história. Enquanto isso, no bar logo abaixo na mesma rua, os amigos do Luciano cantam parabéns para o amigo. Os nomes das ruas estão conservados desde os tempos de sua criação: Rua Jogo da Bola, Ladeira João Homem, Travessa do Sereno, Largo João da Baiana. O carioca tem saída para o estresse diário e não precisa ir muito longe. É simples: um pouco antes da Praça Mauá – onde fica o museu MAR – existe uma ruela, onde fica a antiga Rádio Nacional. Ali existe uma escadinha, a tal que leva ao Morro da Conceição. É difícil não reconhecer esta escadinha. Mesmo sem nunca ter visto, algo no ar indica que não pode ser outra. É ela que liga o Rio da realidade ao Rio dos sonhos, aos ateliers da Ladeira João Homem, ao samba na Pedra do Sal, aos Jardins do Valongo, àquela gente simples e àquele silêncio que é bom de (não) escutar. 

Um comentário:

  1. Texto ótimo só o numero da casa do Dallier está errado é 52 , vale a pena visitar , ele é o sócio fundador benemérito do Projeto Mauá.

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