segunda-feira, 1 de julho de 2013

A história que surge nos dentes encontrados no Porto Maravilha



Resíduos ajudam a contar os hábitos do país na época da escravidão

Pedro Marcelino Ribeiro de Souza

Quem iria adivinhar que os trabalhadores que desembarcavam no porto traziam sua cultura até nos dentes. Com as recentes obras para a construção do Porto Maravilha, os arqueólogos encontraram alguns tesouros enterrados há tempos sob os prédios antigos.  Principalmente debaixo do antigo prédio do Arsenal da Marinha. No local, os arqueólogos estão coletando, limpando e catalogando muitas relíquias. Mais de 80 mil peças foram encontradas nas escavações, azulejos, pedaços de talheres, solas de sapatos, canhões e dentes. Por incrível que pareça, os dentes são enorme importância e, por isso, foram doados para o Museu Odontológico Salles Cunha e já podem ser encontradas nas visitas ao local.
Os mais distraídos passam pelo número 85 da Rua Barão de Sertório, no Rio Comprido, sem saber que lá dentro se esconde um pedaço do Brasil.  Pouca gente nota que ali no sobrado funciona o museu. Estrategicamente posicionado, fica ao lado da Associação Brasileira de Odontologia (ABO). Para visitar o local é preciso agendar previamente pelo telefone do site: o museu só funciona das 13 às 15 horas, de segunda a sexta. 
Cadeira de dentista do Museu Odontológico Salles Cunha

Fizemos uma visita guiada com a dentista Márcia Nascimento que nos explicou um pouco da história do lugar. Logo na entrada daria facilmente para confundir o lugar com museu de artefatos de torturas antigas, pelos antigos instrumentos odontológicos. De moderno, só as portas, que não parecem pertencer ao lugar.


Márcia explicou que hoje é possível descobrir o que os escravos comiam, por conta dos avanços da ciência. Como a escovação era praticamente inexistente na época, os dentes ainda guardavam alguns restos de alimentos. Para a dentista, é mais fácil descobrir o que eles não comiam. Como os alimentos não eram industrializados, não havia erosão nos dentes, como existe atualmente por conta de refrigerantes e similares. Apesar da higiene precária, os escravos comiam alimentos crus e fibrosos, como raízes, o que fazia uma limpeza natural nos dentes.
Os escravos não tinham muito acesso a doces e alimentos com mais sacarose,  que eram consumidos, quase que exclusivamente, pelos senhores de Engenho e suas famílias. Os empregados não podiam comer quase nenhuma fruta – havia represálias – mas, felizmente, davam a eles algumas maçãs. O que pouca gente sabia na época é que as maçãs são uma espécie de escova de dente da natureza. Comer coisas duras ajudava na mastigação e na musculatura perioral (à volta da boca) pelo fato de ter que mastigar repetidas vezes exercendo assim bastante força nos alimentos.
Os escravos, ao serem obrigados a comer raízes, como aipim,  conseguiram conservar os dentes já que não faziam qualquer tipo de escovação. A prática começou com os senhores que  limpavam os dentes com um pano. Para mantê-los limpos,  alguns deles mascavam fumo de rolo, prática corriqueira em alguns lugares do Nordeste, ainda hoje.
Os escravos que tinham mais cáries antigamente eram aqueles que serviam no canavial, explicou a dentista. Porque eles entravam em contato direto com a cana-de-açúcar. O problema principal não é o consumo da cana e nem a quantidade, mas sim a frequência do consumo. Antigamente era difícil de medir a produção dos canaviais e parte era consumida pelos próprios trabalhadores.
Quando o escravo tinha cárie, ou qualquer tipo de problema de saúde, dificilmente era atendido. Nos casos excepcionais,  o “problema” era resolvido com extração com um alicate gigante, que está exposto no museu.  Anestesia? Para diminuir a dor dos escravos eles bebiam ou cheiravam diversas bebidas, a mais comum era a cachaça. Havia também o éter, pouco comum nos trabalhadores. Quando não eram atendidos, os escravos tinham que escolher entre viver com a dor, ou retirar o dente sozinho.
O museu que conta a história dos dentes e dentistas do Brasil continua aberto, assim como os buracos das escavações da região do porto, atrás de “novas” descobertas. É incrível como o passado tem várias formas de nos fazer sorrir.

Os dentistas-sangradores de acordo com Debret


História dos dentes

Os dentes tiveram um papel importante na história nacional. No início do século XVIII (entre 1709 e 1720) surgiu no Brasil uma corrida pelo o ouro. O ouro era abundante no interior da Capitania de São Paulo, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A mão de obra daquela época era formada quase 100% por escravos.
Os trabalhadores das minas de ouro eram submetidos às piores condições de trabalho possíveis. Com o passar dos tempos os escravos começaram a roubar parte do ouro que garimpavam. Onde eles escondiam o furto? Nos dentes. Colocavam uma pepita entre um dente e outro e iam acumulando um montante para conseguir comprar a tão sonhada carta de alforria, que também podia ser doada pelos senhores de engenho.
Naquela época, o Brasil adotava o padrão europeu de odontologia. Quando era preciso fazer uma dentadura para alguém, a prótese era esculpida em marfim ou osso. Quando alguém perdia um dente, era ainda pior. Acredite-se ou não, se alguém perdesse um dente, no lugar era colocado dente de outra pessoa, ou, ainda, de um animal, como o cachorro. Eles eram colocados e retirados na boca através de molas.

Os dentistas, naquele tempo, eram formados, em sua maioria, por barbeiros e sangradores (uma espécie de cirurgião antigo). Eles aprendiam o oficio com alguém mais experiente e tinham que provar suas habilidade dois anos depois.

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