Resíduos ajudam a contar os hábitos do país na época da
escravidão
Pedro Marcelino Ribeiro de
Souza
Quem iria adivinhar que os
trabalhadores que desembarcavam no porto traziam sua cultura até nos dentes.
Com as recentes obras para a construção do Porto Maravilha, os arqueólogos
encontraram alguns tesouros enterrados há tempos sob os prédios antigos. Principalmente debaixo do antigo prédio do Arsenal
da Marinha. No local, os arqueólogos estão coletando, limpando e catalogando muitas
relíquias. Mais de 80 mil peças foram encontradas nas escavações, azulejos,
pedaços de talheres, solas de sapatos, canhões e dentes. Por incrível que
pareça, os dentes são enorme importância e, por isso, foram doados para o Museu
Odontológico Salles Cunha e já podem ser encontradas nas visitas ao local.
Os mais distraídos passam pelo
número 85 da Rua Barão de Sertório, no Rio Comprido, sem saber que lá dentro se
esconde um pedaço do Brasil. Pouca gente nota que ali no sobrado
funciona o museu. Estrategicamente posicionado, fica ao lado da Associação Brasileira
de Odontologia (ABO). Para visitar o local é preciso agendar previamente pelo
telefone do site: o museu só funciona das 13 às 15 horas, de segunda a
sexta.
Cadeira de dentista do Museu Odontológico Salles Cunha
|
Fizemos uma visita guiada com a
dentista Márcia Nascimento que nos explicou um pouco da história do lugar. Logo
na entrada daria facilmente para confundir o lugar com museu de artefatos de
torturas antigas, pelos antigos instrumentos odontológicos. De moderno, só as
portas, que não parecem pertencer ao lugar.
Márcia explicou que hoje é possível
descobrir o que os escravos comiam, por conta dos avanços da ciência. Como a
escovação era praticamente inexistente na época, os dentes ainda
guardavam alguns restos de alimentos. Para a dentista, é mais fácil descobrir o
que eles não comiam. Como os alimentos não eram industrializados, não havia
erosão nos dentes, como existe atualmente por conta de refrigerantes e
similares. Apesar da higiene precária, os escravos comiam alimentos crus e fibrosos,
como raízes, o que fazia uma limpeza natural nos dentes.
Os escravos não tinham muito acesso
a doces e alimentos com mais sacarose, que eram consumidos, quase
que exclusivamente, pelos senhores de Engenho e suas famílias. Os empregados não
podiam comer quase nenhuma fruta – havia represálias – mas, felizmente, davam a
eles algumas maçãs. O que pouca gente sabia na época é que as maçãs são uma
espécie de escova de dente da natureza. Comer coisas duras ajudava na
mastigação e na musculatura perioral (à volta da boca) pelo fato de ter que
mastigar repetidas vezes exercendo assim bastante força nos alimentos.
Os escravos, ao serem obrigados a
comer raízes, como aipim, conseguiram conservar os dentes já que não
faziam qualquer tipo de escovação. A prática começou com os senhores que limpavam os dentes com um pano. Para mantê-los
limpos, alguns deles mascavam fumo de
rolo, prática corriqueira em alguns lugares do Nordeste, ainda hoje.
Os escravos que tinham mais cáries
antigamente eram aqueles que serviam no canavial, explicou a dentista. Porque
eles entravam em contato direto com a cana-de-açúcar. O problema principal não
é o consumo da cana e nem a quantidade, mas sim a frequência do consumo.
Antigamente era difícil de medir a produção dos canaviais e parte era consumida
pelos próprios trabalhadores.
Quando o escravo tinha cárie, ou
qualquer tipo de problema de saúde, dificilmente era atendido. Nos casos excepcionais,
o “problema” era resolvido com extração
com um alicate gigante, que está exposto no museu. Anestesia? Para
diminuir a dor dos escravos eles bebiam ou cheiravam diversas bebidas, a mais
comum era a cachaça. Havia também o éter, pouco comum nos trabalhadores. Quando
não eram atendidos, os escravos tinham que escolher entre viver com a dor, ou
retirar o dente sozinho.
O museu que conta a história dos
dentes e dentistas do Brasil continua aberto, assim como os buracos das
escavações da região do porto, atrás de “novas” descobertas. É incrível como o
passado tem várias formas de nos fazer sorrir.
Os dentistas-sangradores de acordo com Debret |
História dos dentes
Os dentes tiveram um papel
importante na história nacional. No início do século XVIII (entre 1709 e 1720)
surgiu no Brasil uma corrida pelo o ouro. O ouro era abundante no interior da
Capitania de São Paulo, em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. A mão de obra
daquela época era formada quase 100% por escravos.
Os trabalhadores das minas de ouro
eram submetidos às piores condições de trabalho possíveis. Com o passar dos
tempos os escravos começaram a roubar parte do ouro que garimpavam. Onde eles
escondiam o furto? Nos dentes. Colocavam uma pepita entre um dente e outro e
iam acumulando um montante para conseguir comprar a tão sonhada carta de
alforria, que também podia ser doada pelos senhores de engenho.
Naquela época, o Brasil adotava o
padrão europeu de odontologia. Quando era preciso fazer uma dentadura para
alguém, a prótese era esculpida em marfim ou osso. Quando alguém perdia um
dente, era ainda pior. Acredite-se ou não, se alguém perdesse um dente, no
lugar era colocado dente de outra pessoa, ou, ainda, de um animal, como o
cachorro. Eles eram colocados e retirados na boca através de molas.
Os dentistas, naquele tempo, eram
formados, em sua maioria, por barbeiros e sangradores (uma espécie de cirurgião
antigo). Eles aprendiam o oficio com alguém mais experiente e tinham que provar
suas habilidade dois anos depois.
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